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1999: o ano que definiu duas décadas de cinema

Por| 11 de Maio de 2019 às 13h05

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1999: o ano que definiu duas décadas de cinema
1999: o ano que definiu duas décadas de cinema

Em uma semana em que tivemos, com apenas dois quatro dias de diferença, a estreia de Vingadores Ultimato - que foi o final para todo um arco de 11 anos da Marvel no cinema muito melhor do que qualquer um esperava - e a tão aguardada batalha contra o exército dos mortos em Game of Thrones, é fácil se pegar perguntando quando um período tão curto de tempo teve tanta importância em termos de cultura.

Enquanto Vingadores já conseguiu arrecadar mais de US$ 2 bilhões, o terceiro episódio da última temporada de Game of Thrones foi o episódio de uma série de TV mais comentado da história do Twitter — dois feitos que por si só já colocam ambas as produções na história do cinema e da TV, independentemente da suposta qualidade que a crítica, e até mesmo o público, enxerga ou não nesses filmes e séries.

Em 2019, os dois maiores fenômenos do cinema e da TV são produções que a crítica historicamente considerou como “menores” durante quase toda a sua história: filmes de super-heróis e de fantasia medieval. E, se houve um momento que podemos considerar como ponto de partida para esse cenário, esse momento é o ano de 1999.

O berço do cinema de 2019

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Poucos anos possuíram a mesma importância para a cultura pop — e para o tipo de filme que vemos hoje no cinema — do que 1999. É fácil perceber isso apenas fazendo uma lista dos principais filmes lançados no ano: Matrix, O Sexto Sentido, Clube da Luta, Quero Ser John Malkovich, A Bruxa de Blair, Magnólia, Três Reis, De Olhos Bem Fechados, A Múmia, Um Lugar Chamado Notting Hill, 10 Coisas Que eu Odeio em Você, Segundas Intenções, As Virgens Suicidas, Tudo Sobre Minha Mãe e o retorno da maior franquia de ficção científica da história do cinema com Star Wars Episódio I: A Ameaça Fantasma. São raríssimos os anos que contam com essa quantidade de clássicos lançados todos juntos — e, mais raro ainda, tantos títulos originais.

Com exceção de Clube da Luta (baseado no livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk e lançado em 1996), A Múmia (baseado, em certa forma, no monstro que é de domínio público e, ao mesmo tempo, no filme de 1932 estrelado por Boris Karloff), De Olhos Bem Fechados (baseado no livro Breve Romance de um Sonho, do poeta e romancista austríaco Arthur Schnitlzer) e A Ameaça Fantasma, todos os outros grandes filmes daquele ano — não apenas no quesito sucesso, mas que pavimentaram o caminho para os próximos vinte anos de cinema — são produções originais.

Hoje em dia, é fácil encontrar em qualquer cinema “velhos gritando contra a nuvem” de que os filmes de super-heróis estão matando as produções originais de Hollywood, mas a verdade é que Hollywood nunca gostou muito de originalidade: afinal, fazer cinema não-independente sempre foi um investimento pesado, e poucos estúdios confiavam tanto em seus diretores a ponto de darem a eles cheques em branco para fazer o filme que quisessem se já não estivessem ligados a algo que já era conhecido pelo público.

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E isso aconteceu por uma confluência de fatores: ao mesmo tempo que os estúdios tinham dinheiro para gastar (após anos de sucessos de bilheteria como Titanic, Advogado do Diabo e Homens de Preto), a confiança de Hollywood nas franquias de sucesso estava em baixa. Não apenas as sequências de franquias famosas (como Velocidade Máxima 2, Máquina Mortífera 4 e Alien - A Ressurreição) haviam estreado com desempenho muito abaixo de qualquer expectativa, como até mesmo filmes que “não tinham como dar errado”, como Batman & Robin, acabaram decepcionando seus estúdios (e neste caso em específico dá pra colocar boa parte da culpa no Joel Schumacher). Assim, no final da década de 1990, Hollywood estava em um estado de transição. Como não havia mais uma fórmula do que realmente daria certo, os estúdios estavam mais dispostos a investir em ideias novas para ver se encontravam a nova tendência de mercado que faria milhões nos próximos cinco ou seis anos com sequências.

Esse estado de transição era algo não apenas de Hollywood, mas da sociedade como um todo. A iminente passagem para o ano 2000 — não apenas uma nova década, mas também um novo século e milênio — criava uma expectativa de mudança em toda a população. O medo dessa mudança era constante — seja pelas profecias de Nostradamus sobre o fim do mundo, seja pelo medo real do “bug do milênio” que, se não fosse consertado à tempo, poderia fazer com que todos os computadores do mundo falhassem ao mesmo tempo — e, assim como os estúdios, o público estava pronto para coisas que não só fossem um “espelho” do momento em que a sociedade se encontrava, mas também mostrassem o possível caminho para onde essa sociedade — ou, mais especificamente, o cinema — deveria ir.

E, para variar, a Academia do Oscar olhou apenas para o estado de “espelho” e ignorou a “estrada para o futuro” na hora de indicar os títulos que concorreriam à premiação de Melhor Filme do ano. Os indicados a melhor filme lançado em 1999 foram Beleza Americana (que acabou levando o prêmio), Regras da Vida, O Informante, À Espera de um Milagre e O Sexto Sentido. Nenhum desses filmes são realmente ruins — pelo contrário —, mas, talvez com exceção de O Sexto Sentido (e mesmo assim é algo debatível), não pensamos em nenhum destes como sendo o melhor ou mais importante filme lançado em 1999. Ainda que Beleza Americana tenha, de certa forma, previsto uma parte da sociedade futura (saudades daquela época em que as pessoas assistiam ao filme e achavam absurda a ideia apresentada por ele de que seus vizinhos poderiam ser nazistas), nenhum deles foi exatamente importante para o desenvolvimento da mídia. E isso é uma bela mancha na habilidade de a Academia enxergar filmes, já que 1999 foi basicamente o ano que definiu todas as tendências do cinema nos próximos 20 anos.

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No código da Matrix

Quando falamos de filmes que definiram o cinema do século XXI, o primeiro título que vem à cabeça é Matrix. A ficção científica das irmãs Wachowski transportou a clássica história do “escolhido” de modo a se tornar algo interessante para o mundo que começava a descobrir as utilidades da internet. E se você for pesquisar rapidamente no Google sobre o filme, vai perceber que todas as manchetes concordam em uma coisa: Matrix mudou toda a história do cinema dali para frente.

Até o surgimento de Matrix, o cinema de ação sempre foi algo muito dividido: ou o filme seguia o padrão oriental de lutas coreografadas de kung-fu, ou o padrão ocidental de tiroteios e perseguições, no qual os personagens mal sabiam direito dar um soco. Quando surgiu nos cinemas, Matrix resolveu essa questão respondendo: por que não ambos?

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As cenas de luta em Matrix são uma obra de arte e deveriam ser emolduradas e repetidas ad infinitum em todos os museus do mundo. O filme conseguiu juntar da melhor maneira possível as tradições orientais e ocidentais para filmes de ação, criando imagens que ninguém nunca achou possível, como usar movimentos acrobáticos de artes marciais como arma em um tiroteio. E o melhor encapsulamento disso é a cena do lobby de entrada no prédio onde Morpheus está sendo mantido prisioneiro, em que Neo e Trinity usam suas habilidades de artes marciais para derrotar uma tropa de soldados de elite que estão atirando tanto que mal há espaço para se movimentar na cena. Hoje, cenas como essa são comuns, mas quando Matrix as mostrou pela primeira vez em 1999, era possível ver as pessoas literalmente caindo da cadeira e tendo ereções na sala do cinema.

Outra coisa criada por Matrix e que mudaria para sempre o cinema de ação é o bullet time, o efeito em que a cena passa a ser gravada em supercâmera lenta, tornando possível que o espectador do filme tenha uma definição visual da trajetória das balas durante um tiroteio. Assim como as cenas de luta, esse efeito também foi uma fusão de técnicas de filmes de ação orientais e ocidentais (já que nos filmes de kung-fu sempre há o momento dramático do golpe final filmado em câmera lenta) e que fez tanto sucesso que foi abraçado não apenas pelos próximos filmes de ação, mas também pelos jogos de videogame, que passaram a oferecer o bullet time como uma habilidade de seus personagens, como foi muito bem utilizado pela franquia Max Payne.

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Mas Matrix não mudou apenas como a ação é mostrada, mas também como ele é pensada. Até 1999, filmes de ação possuíam sempre uma história específica que era repetida a cada novo lançamento: ou era sobre um policial (ou dupla de policiais) precisando capturar um criminoso e impedir algum ato terrorista na cidade, ou sobre um militar ou ex-militar que precisa se vingar de algum ato de violência contra algum membro de sua família, ou então resgatar algum familiar direto quase sempre do sexo feminino (esposa/filha/mãe) que é refém de uma quadrilha de criminosos.

Mais uma vez, a fusão do oriental/ocidental de Matrix foi o que mudou as coisas: ao mesmo tempo em que possui subtramas extremamente ocidentais (como salvar um refém ou se vingar de alguma violência), a trama principal do filme é algo muito oriental, sobre um “escolhido”, um alguém especial que possui o poder para salvar toda a humanidade. E, ao salpicar essa mistura com um discurso filosófico (ainda que de filosofia de bar), Matrix conseguiu algo que nenhum outro filme de ação até então tinha feito: parecer inteligente. Falar que gostava de Matrix mais pelo roteiro do que pelas cenas de luta não era um insulto, e uma parte da crítica da época realmente entrou nesse barco (ainda que, no fundo, a gente sabe que essa galera também ficava animadíssima ao ver cenas como a do lobby).

Outro ponto muito importante do filme é ele ter sido o primeiro a falar diretamente com uma geração que começava a passar mais tempo conectada à internet do que fora dela. Ainda que a internet não funcionasse exatamente como a mostrada em Matrix, o lugar onde Neo, Trinity e Morpheus se conectavam para realizar suas façanhas e lutar contra o Agente Smith emulava a sensação que todos sentíamos quando conectávamos aos primeiros jogos online — principalmente nos primeiros MMOs, como Ultima Online e Tibia. Mas mais do que nos dar a mesma sensação de quando conectávamos ao servidor de um jogo onde éramos os heróis, Matrix serviu de base para como o cinema trataria a internet.

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Com a virada do século e os computadores cada vez mais comuns na vida das pessoas, o fato de boa parte dos diretores renomados serem mais velhos e não saberem exatamente como os computadores e a internet funcionavam fazia com que os filmes basicamente ignorassem esse aspecto da vida das pessoas. Durante os primeiros 20 minutos de Matrix, em que vemos o hacker conhecido na internet como “Neo” invadindo bancos de dados e vendendo informações confidenciais, basicamente definem como a rede de computadores seria tratada pelos cinemas nos próximos anos. E, mesmo que 20 anos depois a internet já seja algo muito mais grandioso do que imaginávamos em 1999, a representação dela no cinema ainda não está muito diferente daquela utilizada em Matrix.

O pior filme a definir um século

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Olha, se tem uma coisa que não dá para defender é a qualidade do material: Star Wars Episódio 1: A Ameaça Fantasma é um filme ruim. Ponto. Mas ele, como fenômeno, é interessantíssimo, pois talvez seja o único filme indubitavelmente ruim que ajudou a definir o futuro dos cinemas.

Provavelmente todos lembram do fenômeno que foi o retorno dos filmes da franquia Star Wars em 2015 com O Despertar da Força. Pegue esse sentimento e multiplique por 100 — essa era a expectativa dos fãs pelo lançamento de A Ameaça Fantasma.

Desde que O Retorno de Jedi havia sido lançado em 1983, o fenômeno Star Wars era algo que qualquer crítico mais jovem não conseguiria entender: ela era uma franquia com uma enorme legião de fãs que aumentava a cada ano, que lotava salas de cinema para ver “edições especiais” dos mesmos filmes que já haviam sido assistidos 200 vezes, que comprava camisetas, bonequinhos, chaveiros e qualquer nova edição de VHS ou DVD lançada sobre a trilogia original, mas que ficou 16 anos sendo deixada de lado por George Lucas, que se recusava a lançar mais filmes de Star Wars.

Era quase uma relação abusiva: enquanto esses fãs compravam praticamente tudo o que era lançado sobre a saga e organizavam eventos para se encontrarem e “evangelizarem” mais pessoas para o mundo de Star Wars, George Lucas e a Lucasfilms quase que “torturavam” essa base de fãs lançando 200 edições dos mesmos filmes com uma cena a mais que havia sido cortado no original, ou com o uso de um filtro diferente que melhora a iluminação, mas sem realmente fornecer nenhum conteúdo novo para eles, que precisavam se contentar com jogos de videogames, livros, quadrinhos e RPGs que, ainda que usassem os personagens e o mundo criado por Lucas, não eram canônicos.

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Então, quando A Ameaça Fantasma foi lançado em 1999, a expectativa para o filme era tanta que muita gente se beliscava nas filas dos cinemas para ter certeza de que não estava sonhando. Essa não era a primeira vez que víamos como a geração do que hoje chamamos de hype levava as pessoas para o cinema (de certa forma, Titanic havia feito o mesmo alguns anos antes), mas era um hype diferente. A Ameaça Fantasma ajudou a criar esse conceito muito comum que vemos hoje, em que as pessoas vão ver um filme por serem fãs dos personagens ou do universo, e não necessariamente pelo fato do filme ser bom ou não — algo fácil de notar em 2019 quando falamos de filmes da Marvel, DC, do mundo de Harry Potter ou ainda dos remakes de clássicos da Disney, como O Rei Leão. Isso não quer dizer que os filmes em geral sejam ruins (muitas vezes são ótimos em todos os sentidos), mas a qualidade não é mais o motivo principal pelo qual as pessoas saem de casa para ir ao cinema.

Mas A Ameaça Fantasma não apenas ajudou a definir como o cinema pode usar a seu favor o amor de um fandom, como também inaugurou uma tendência que passou a definir o cinema das primeiras décadas do século XXI: a história de origem sobre uma figura popular fictícia. Desde a trilogia original, mesmo quem não era fã de Star Wars ao menos tinha uma ideia de quem era Darth Vader, o vilão de armadura preta, voz profunda e respiração pesada que se parecia bastante com o MacGaren do Jaspion.

Darth Vader já havia deixado de ser apenas o vilão do filme e se tornado um ícone da cultura pop tanto quanto Batman, Homem-Aranha ou o Pernalonga. A diferença é que, até então, quando fazíamos filmes com esses personagens, eles eram o elemento principal (o protagonista), mas as histórias em si não eram sobre eles. Ainda que antes de 1999 já tivéssemos tido quatro filmes do Batman, nenhum deles era sobre os eventos que fizeram com que a criança Bruce Wayne crescesse e se transformasse no herói. Mesmo quando essas origens eram mostradas na tela, eram como cenas rápidas, pois não havia interesse em explicar as motivações por detrás do personagem — afinal, o filme não era sobre o menino que cresce e veste uma roupa de morcego, mas sobre o homem em roupa de morcego que bate nos criminosos.

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Ao resolver fazer não apenas uma nova trilogia de Star Wars, mas uma em que o centro da história seria contar todos os eventos que fizeram com que o Jedi Anakin Skywalker se transformasse no vilão Darth Vader, George Lucas acabou por, talvez sem querer, mais uma vez definir os caminhos do cinema pelas próximas décadas. Quando A Ameaça Fantasma nos apresenta o Anakin não como uma cria do capeta, mas como uma criança inteligente e com grande afinidade com a Força e que é criada como escrava, a partir daquele momento toda nossa ideia sobre Darth Vader é mudada e o personagem deixa de ser o vilão que personifica toda a maldade do mundo e passa a ser humanizado, fazendo-nos crer que talvez ainda houvesse alguma salvação e que ele não tivesse se tornado vilão se as circunstâncias da vida dele fossem diferentes — algo que foge muito do maniqueísmo proposto pela trilogia original.

E essa foi outra grande contribuição de A Ameaça Fantasma para o cinema, que passou a ver esses personagens da cultura pop não apenas como alguém para trazer interesse do público para seu filme, mas alguém que pode ser o tema principal do próprio filme. E é muito fácil comparar essas situações com o Batman: nas duas primeiras interações dele (os dois filmes de Tim Burton e nos dois filmes de Joel Schumacher) não há interesse em mostrar o desenvolvimento do personagem. Ele é o herói, ele combate o crime, e o assassinato dos pais é lembrado apenas como uma cena de cinco minutos como motivação de porque um bilionário resolveu se fantasiar de morcego e combater o crime.

Já no Batman pós-A Ameaça Fantasma, Christopher Nolan passa um filme inteiro apenas nos mostrando como o assassinato dos pais do jovem Bruce Wayne mexeu com a cabeça dele e todo o processo de lidar com esse luto, que foi de tentar fugir do fato, enfrentar o fato e então tornar o fato em combustível para que ele pudesse homenagear a memória dos pais de modo que os deixaria orgulhosos: tendo a coragem necessária para proteger os oprimidos.

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Um filme como Batman Begins — ou até mesmo os da Marvel — possivelmente nunca teria acontecido se A Ameaça Fantasma não tivesse provado que é possível usar o próprio personagem e sua evolução como tema principal de um filme. Isso faz com que A Ameaça Fantasma seja possivelmente um dos piores filmes (e muitos consideram como o pior) de todo o universo Star Wars ao mesmo tempo seja que foi o filme mais influente da virada do século e que definiu tudo aquilo que vemos no cinema hoje. Então, quando estiver maratonando Star Wars e nos esforçando para não pular A Ameaça Fantasma e toda a trama chata e sem sentido sobre a Federação do Comércio da galáxia, lembre-se que sem esse filme horrível e chatíssimo provavelmente nunca poderíamos curtir a obra-prima cinematográfica que foi Vingadores: Ultimato.

O marketing do medo

Mas Matrix e A Ameaça Fantasma não foram os únicos fenômenos culturais de 1999 que ajudaram a definir o estado atual das coisas no cinema. Houve ainda um terceiro filme que, ao contrário dos outros, não se valeu de milhões de dólares investidos em efeitos especiais e no amor de um fandom que consumiria literalmente qualquer coisa sobre a franquia amada. Esse terceiro filme foi bem mais modesto em matérias de produção, mas mudou não apenas todo o gênero de terror como também definiu o que seria uma estratégia de marketing feita majoritariamente pela internet. E esse filme foi A Bruxa de Blair.

Poucos filmes tiveram uma porcentagem de lucro tão grande quanto A Bruxa de Blair: o filme indie de terror custou apenas US$ 35 mil dólares para ser produzido e arrecadou quase US$ 250 milhões apenas em bilheteria. Mas como um filme feito por dois jovens que acabaram de sair da faculdade se tornou um dos maiores fenômenos de 1999? A resposta é bem simples: ele foi um dos primeiros a viralizar pela internet.

Quando Daniel Myrick e Eduardo Sánchez começaram a pensar sobre o filme, a ideia não era exatamente produzir um filme de terror, mas criar uma lenda urbana moderna. Fãs de lendas como o Pé Grande e de séries como In Search Of…, eles adoravam o modo como imagens documentais e gravações caseiras podiam ser usadas para gerar uma sensação de medo e decidiram que iriam produzir um filme que usasse todas essas características.

Para isso, eles criaram a personagem da Bruxa de Blair, uma criatura que, na própria concepção, também não existia de verdade. A Bruxa de Blair não seria um monstro real, mas uma desculpa criada por Rustin Parr — um personagem fictício criado para a lenda — que, em 1940, teria matado sete crianças em sua casa e colocado a culpa na tal Bruxa de Blair. O modelo narrativo era tão verossímil — afinal, um assassinato real em que o criminoso coloca a culpa de seus atos em uma suposta criatura sobrenatural é o tipo de coisa que acontece em praticamente todas as cidades do mundo — que as pessoas realmente acreditavam que aquelas filmagens caseiras feitas pelos diretores eram reais.

Assim, a Bruxa de Blair seria esse ser místico que vivia nas florestas do estado de Maryland e que matava adolescentes que entrassem em seus domínios. E, para tentar dar mais credibilidade ao filme, os criadores do monstro começaram a inventar manchetes de jornais e reportagens sobre pessoas desaparecidas nas florestas da região, no intuito de fazer com que as pessoas achassem que essa lenda que eles haviam inventado fosse mesmo algo real.

A estratégia acabou dando certo: as pessoas que se deparavam com a história da Bruxa nos primeiros fóruns da internet logo ficavam obcecadas pelo assunto, discutindo sobre se os tais vídeos encontrados (Myrick e Sánchez já haviam liberado algumas cenas do que se tornaria o filme A Bruxa de Blair como pedaços de vídeos encontrados perdidos na mata) eram reais ou não, se a Bruxa era real ou não. As pessoas queriam tanto saber sobre a criatura e sobre suas potenciais vítimas que o Split Screen — um programa de TV que havia dedicado um de seus episódios ao mistério — falou para os criadores da lenda que eles deveriam criar um site próprio, porque desde que o episódio sobre a Bruxa havia saído as pessoas só falavam sobre aquilo nos fóruns do programa, o que estava matando as discussões sobre qualquer outro assunto.

Foi quando ambos os diretores resolveram criar o próprio website que a mitologia sobre a história foi se formando. Além dos recortes de jornais falsos e das imagens que já haviam disponibilizado para o Split Screen, eles soltaram no site outras imagens do filme como fotos que haviam sido divulgadas pelo Departamento de Polícia de Frederick County e que supostamente haviam sido encontradas embaixo de uma cabana de madeira no meio do bosque que deveria ter mais de 100 anos.

A cada nova informação divulgada, mais a lenda sobre a Bruxa ia crescendo nos círculos de teoria da conspiração e fenômenos sobrenaturais dos primórdios da internet, e a legião de interessados pela história ia aumentando exponencialmente. E, claro, eles mantinham o segredo das fitas: supostamente, elas haviam sido encontrados na floresta e foram gravadas por um grupo de estudantes de cinema que desapareceu naquele lugar quando gravavam um documentário sobre a lenda local da Bruxa de Blair.

A tacada final no projeto foi quando a Haxan Films (companhia criada por Myrick e Sánchez e que era a responsável pelas gravações de A Bruxa de Blair) se apresentou como uma produtora de vídeo que havia sido contratada pelas famílias dos estudantes que haviam desaparecido na floresta para editar as fitas encontradas pela polícia e investigar o que realmente aconteceu com aqueles estudantes. Ao fazer isso, os próprios criadores não apenas se colocavam como parte da mitologia, como ajudavam a criar uma expectativa para o filme ao revelar novas informações descobertas durante a “investigação” para os frequentadores da página.

Muito antes de a Marvel criar o UCM (Universo Cinematográfico Marvel), os diretores de A Bruxa de Blair criavam o conceito de universo expandido de um filme, divulgando detalhes suficientes sobre o mistério para que não apenas as pessoas tivessem o que discutir, mas levassem essa discussão para outros públicos. Mesmo antes de o filme ser lançado, diversas pessoas interessadas no mistério lançaram seus próprios sites sobre A Bruxa de Blair e a história então era descoberta por novos públicos, que a levavam para um número maior de pessoas.

Isso quer dizer que, muito antes das redes sociais obrigarem os estúdios a se preocuparem com palavras como “engajamento” e “viralização”, o fenômeno A Bruxa de Blair já trabalhava esses conceitos como forma de marketing. Foi isso o que fez com que quando finalmente o filme foi lançado, em 1999, legiões de fãs lotassem as salas de cinema para finalmente descobrir o que é que havia nas famigeradas fitas encontradas na floresta.

Ainda que os dois diretores tenham tomado decisões voltadas apenas para o marketing, o modo como os fãs reagiram à história online não foi algo programado. O fenômeno A Bruxa de Blair é o sonho erótico de qualquer marqueteiro do século XXI: um case de sucesso com engajamento e viralização totalmente orgânicos, conseguidos com orçamento zero e trazendo lucros muito acima do esperado para o estúdio.

Enquanto Matrix definiu como a internet seria representada nas telas de cinema, foi A Bruxa de Blair que mostrou como ela poderia ser utilizada pelas equipes de marketing para vender o produto a uma nova audiência e também como gerar conteúdo para manter esse público interessado no assunto mesmo anos antes do lançamento do filme.

As escolhas que mudaram o mundo

Ao ver qualquer um dos filmes em cartaz em qualquer semana de 2019, é muito fácil perceber toda a influência que o ano de 1999 teve sobre eles. Seja no uso de elementos da cultura pop, no aproveitamento do fandom, na criação de conteúdos para expandir o universo do filme ou mesmo no modo como são filmadas as cenas de ação, praticamente todos os grandes filmes de 2019 podem ser definidos como crias naturais de Matrix, A Ameaça Fantasma e A Bruxa de Blair.

Assim como raramente um único ano possui tantos filmes que marcaram época e consta em praticamente todas as listas de melhores filmes da história do cinema, também é raro que as produções de um único ano definam tudo aquilo que será evoluído durante as próximas décadas. 1999 foi um desses raros anos e foi tão importante para o cinema contemporâneo que há uma grande chance de que, mesmo daqui a 50 ou 100 anos, a influência de títulos como Matrix e A Bruxa de Blair ainda seja clara em boa parte dos filmes que farão sucesso em formatos de mídia que ainda não foram descobertos e os quais não temos ainda capacidade nem de imaginar.

Fonte: The Ringer