A ficção científica e as previsões do futuro incerto da humanidade - Parte 3
Por Daniele Cavalcante | •
Depois de falarmos sobre obras clássicas da ficção científica que, de certa maneira, previram o momento atual em que vivemos (na primeira parte deste especial), e também de analisarmos o que previram obras japonesas de sci-fi e distopia (na segunda parte), chegou a hora de encerrar o especial falando sobre a futurologia — e como ela estuda as tendências tecnológicas para "prever" o futuro.
Os autores de ficção científica não estão sozinhos na tarefa de “prever” as tecnologias do futuro e fazer provocações sobre como construímos nossas sociedades na era tecnológica. Na verdade, existe uma disciplina acadêmica muito específica para isso: que é justamente a futurologia, uma das áreas dos estudos do futuro. Nesta matéria, falaremos sobre essa área do conhecimento que também provoca, questiona e traz reflexões filosóficas sobre as tecnologias atuais e como podemos, enquanto sociedade, nos beneficiar delas da melhor maneira possível.
Mas, antes de falar sobre o que é a futurologia, é preciso primeiro deixar bem claro o que não é. Os estudos do futuro, no geral, têm sido considerados como atividades de se fazer previsões, como se fosse papel deles dizer, com exatidão, quais tecnologias fabulosas se tornarão reais, e quando isso vai acontecer. Mas sabemos que não é possível prever o futuro: mesmo as obras clássicas de ficção científica, que também é parte dos estudos do futuro, cometeram “equívocos” em suas “previsões”.
Para entender melhor como funciona e quais os benefícios desse campo de conhecimento, conversamos com a Lidia Zuin, jornalista e futuróloga, mestre em semiótica e doutoranda em artes visuais pela Unicamp. Ela é head do núcleo de inovação e futurismo da UP Lab e assina coluna quinzenal sobre futurologia, tecnologia e ficção científica no UOL Tab. Logo de início, ela é enfática: “a futurologia tem uma temporalidade de 5 a 10 anos, mas ela não prevê nada”. O que esses pesquisadores fazem é “entender algumas tendências do presente para ajudar empresas e instituições a construírem um futuro mais desejável para todos”.
Agora que já sabemos que futurologia não é previsão do futuro, podemos entender melhor como funciona. Os estudiosos do futuro entendem que a impossibilidade de prever não significa que devemos apenas observar como as tecnologias e as empresas afetarão a sociedade. Eles utilizam metodologias, artigos acadêmicos, reportagens, patentes e, claro, a ficção científica, como Zuin exemplifica ao nos contar que já fez, junto à Envisioning, “um trabalho que comparou Blade Runner 2049, 2001 Uma Odisseia no Espaço, Neuromancer e Detroit Become Human entre as tecnologias da ficção e as tecnologias reais”. O objetivo é explorar as possibilidades, probabilidades e, talvez mais importante, o que é preferível para a sociedade.
Futurologia a serviço da sociedade
Embora muitos trabalhos e pesquisas realizadas pelos futurólogos sejam voltadas para clientes empresariais, essa área do conhecimento não se dedica, nem se destina, apenas às empresas. Podemos analisar, por exemplo, a famosa entrevista de Isaac Asimov (Fundação, Eu, Robô) ao jornalista Bill Moyers, em 1988, na qual ele falou de sua visão sobre o futuro. O trecho da entrevista mais conhecido é onde ele “prevê” o impacto da internet no aprendizado. Em sua fala, o mais importante não é a previsão da tecnologia em si, mas as possibilidades que ela traz para melhorar a vida das pessoas. Quando Moyers questiona se as máquinas poderiam “desumanizar a aprendizagem”, o escritor oferece uma visão completamente diferente - a de que aconteceria o contrário, já que a internet ofereceria uma relação direta entre aluno e a fonte da informação. Essa reflexão servia para, já naquela época, ajudar a moldar a sociedade da melhor maneira quando essa tecnologia surgisse.
De acordo com Richard Slaughter, estudioso e escritor no campo de estudos do futuro, a falta de pensar e estudar o amanhã da sociedade é um dos principais fatores que nos privam de nos adaptarmos às mudanças. Uma sociedade complexa, industrial e tecnológica como a nossa não pode simplesmente esperar as mudanças acontecerem e, em caso de emergência, tentar administrar crises. Com a futurologia, podemos traçar um planejamento de longo prazo para nos adaptarmos melhor às mudanças que acontecerão dentro de alguns anos.
Assim, com provocações, metodologias e exemplos obtidos na ficção científica, podemos criar um pensamento coletivo com uma perspectiva de futuro. Isso também abre as portas para oferecer àqueles com maior poder de decisão um melhor planejamento, estabelecimento de prioridades e aprendizagem, e leva ao público maior conscientização e informação. Como parte desse processo, é importante que a futurologia seja mais popular e acessível para todos.
Além da entrevista de Asimov, há um vídeo de Arthur C. Clarke (2001: Uma Odisséia no Espaço), que também serve para exemplificar bem essas questões.
Zuin faz uma distinção entre duas definições para mostrar seu ponto de vista sobre a função social e humanista da futurologia. A primeira é a definição de "futurismo" da Aerolito (escola de cursos livres sobre inovação e futurismo):
Futurismo é a disciplina que investiga, explora, traduz e acelera as possibilidades de um futuro pós-emergente, ou seja, de cinco a 10 anos. Sua proposta é observar como as evidências (passadas e presentes) encontradas na ciência, na tecnologia e no empreendedorismo (ou negócios em geral) podem afetar a cultura, os novos comportamentos e as novas estruturas da sociedade.
A segunda definição, e a preferida da pesquisadora, é de Ossip k. Flechtheim, cientista político, autor, humanista e creditado na cunhagem do termo "Futurologia":
A futurologia aborda o destino da humanidade, o futuro da sociedade e o amanhã da cultura. Ela lida não apenas com a perspectiva de evolução biológica e psicológica, mas também com uma vasta gama de futuras atividades culturais.
“Na prática, não existe diferença entre futurismo e futurologia (isso pode variar de autor para autor), mas gosto de dizer que enquanto o futurismo tem esse maior viés comercial, a futurologia é como uma filosofia do futuro”, diz Zuin. “Ela está a serviço da sociedade, das pessoas, não necessariamente das empresas”.
Diversidade: o futuro é para todos
Ainda sobre essa preocupação com as pessoas e a sociedade, ao dizer “um futuro mais desejável para todos”, Zuin está incluindo as minorias. “Daí também a importância de se ter diversidade dentro dessa profissão”, afirma. Afinal, se não queremos uma distopia na qual a própria tecnologia colabora com a manutenção das exclusões estruturais e sociais, é importante “que tenha diferentes pessoas atuando nessa frente para poder levar em conta diferentes possibilidades de futuro”, explica a pesquisadora. “Eu como mulher branca não tenho o mesmo olhar de uma mulher negra sobre o presente e sobre o futuro”, conclui.
Por isso gosto de reforçar que o futuro não deve ser um substantivo singular, mas sim plural, porque existem vários tipos de futuro e não apenas aquele do vale do silício. Temos um futuro diferente na China, em Dubai, em países africanos, no Japão e no Brasil.
Para exemplificar, ela menciona a ativista do movimento negro, feminista e empreendedora Monique Evelle, criadora da organização Desabafo Social, que utiliza a comunicação e as novas tecnologias para promoção dos Direitos Humanos. “Monique Evelle tem um TED talk incrível no qual ela fala sobre o vale do silício e o vale do silêncio, que são as periferias. Não são vales do silêncio porque não produzem nada, mas sim porque são silenciados e a inovação que vem das margens não é considerada inovação, mas sim gambiarra. Por que? Ela questiona justamente isso”. Você pode conferir o TED Talk da Monique Evelle aqui.
Também temos outros pesquisadores e pesquisadoras, como Beatrys Rodrigues e Ariana Monteiro. Zuin nos conta que elas trabalham em uma pesquisa sobre futuro do gênero e questões de gênero em um projeto da Envisioning. “Elas brincam que elas "tropicalizam" as tendências para que elas não só traduzam o que ocorre lá fora, mas que faça sentido dentro do nosso contexto”, relata. Outros exemplos aqui no Brasil que abordam questões raciais são o Fábio Kabral e a Morena Mariah, que trabalham com o afrofuturismo “para pensar um futuro mais voltado à ancestralidade da cultura africana”.
A distopia como ferramenta de trabalho
Uma vez que muitos futuristas e futurólogos trabalham junto às empresas e corporações, eles têm a oportunidade de usar todas as ferramentas que os estudos do futuro oferecem para provocar e levar reflexões a essas companhias sobre o impacto que elas podem exercer, mesmo sem saber, sobre a sociedade. Quando alguém lança uma tecnologia inovadora no mercado, que será amplamente adotada pela indústria ou pela população, pode ser difícil prever como isso afetará a sociedade a longo prazo. O otimismo de alguns empreendedores pode cegá-los quanto aos impactos negativos.
Por isso, futurólogos como os pesquisadores da Envisioning lançam mão da ficção científica para ajudar as empresas a não se tornarem as grandes vilãs de uma possível distopia real. E não apenas isso, mas também para mostrar o outro lado das possibilidades - o lado dos benefícios que, muitas vezes, não enxergamos. Lidia Zuin explica que “ao provocar a reflexão e o pensamento crítico, eu justamente quero trazer em pauta essas possibilidades negativas [de que as empresas possam se tornar vilãs por causa de suas tecnologias], mas também outros efeitos positivos que nem sempre são visualizados por fata de conhecimento técnico ou qualquer outro motivo”.
Ao usar a ficção científica, fica mais fácil de tangibilizar essas narrativas que demonstram possibilidades negativas e positivas de uma tecnologia muito mais do que simplesmente criar a próxima ferramenta que irá gerar engajamento de 200% e fará uma startup se tornar um unicórnio ou uma empresa dobrar sua receita [...] Como alguém que adora cyberpunk e se formou pesquisando e escrevendo nesse gênero, eu acabo sempre trazendo essa provocação arquetípica daquela empresa ou corporação que se torna o grande inimigo em uma narrativa (por exemplo Skynet em Exterminador do Futuro) justamente para alertar de que certas decisões podem fazer com que as empresas se tornem mais uma Skynet do que uma empresa realmente desejável e que ajude a sociedade a atingir um cenário futuro mais positivo.
Entrevista com quem entende
Confira abaixo a nossa entrevista com Lidia Zuin na íntegra. E se você estiver interessado em conhecer mais sobre futurologia, ou até mesmo estudar para se tornar um futurólogo, a pesquisadora deixou algumas dicas no final da nossa conversa.
Canaltech: Oi Lidia! Vamos começar com o básico: o que é um futurólogo?
Lidia Zuin: Futurologia é uma das áreas do future studies ou estudos do futuro, assim como também o trendforecasting, coolhunting, forecasting e até mesmo a ficção científica - a diferença está nas temporalidades e nas metodologias, mais próximas da sensibilidade do pesquisador ou de métodos científicos. A futurologia tem uma temporalidade de 5 a 10 anos, mas ela não prevê nada. Ela tenta entender algumas tendências do presente para ajudar empresas e instituições a construírem um futuro mais desejável para todos - daí também a importância de se ter diversidade dentro dessa profissão.
Os métodos variam de pesquisador e instituto para instituto, mas existem algumas padronizações como a medição TRL da NASA (Technology Readiness Level ou nível de prontidão de uma tecnologia) que consegue quantificar o quão pronta alguma tecnologia está (é mais conceito, está em teste em laboratório, já é produto?). As fontes que usamos variam entre artigos acadêmicos, reportagens, patentes, projetos de financiamento coletivo, mas também a ficção científica como uma forma de olhar para possibilidades do futuro. Já fiz junto à Envisioning um trabalho que comparou Blade Runner 2049, 2001 uma odisseia no espaço, Neuromancer e Detroit Become Human entre as tecnologias da ficção e as tecnologias reais - você pode ver aqui (em works).
CT: Então a futurologia se restringe às pesquisas voltadas às empresas? Ou existe alguma área da futurologia mais voltada ao público, como literatura ou jornalismo?
LZ: Não. A futurologia não é só dedicada às empresas. Eu costumo fazer essa distinção entre, por exemplo, a definição de "futurismo" que a Aerolito (escola de cursos livres sobre inovação e futurismo) dá: Futurismo é a disciplina que investiga, explora, traduz e acelera as possibilidades de um futuro pós-emergente, ou seja, de cinco a 10 anos. Sua proposta é observar como as evidências (passadas e presentes) encontradas na ciência, na tecnologia e no empreendedorismo (ou negócios em geral) podem afetar a cultura, os novos comportamentos e as novas estruturas da sociedade.
Porém, eu gosto mais de uma outra definição dada pelo Ossip k. Flechtheim acerca da futurologia: "A futurologia aborda o destino da humanidade, o futuro da sociedade e o amanhã da cultura. Ela lida não apenas com a perspectiva de evolução biológica e psicológica, mas também com uma vasta gama de futuras atividades culturais". Na prática, não existe diferença entre futurismo e futurologia (isso pode variar de autor para autor), mas gosto de dizer que enquanto o futurismo tem esse maior viés comercial, a futurologia é como uma filosofia do futuro. Ela está a serviço da sociedade, das pessoas, não necessariamente das empresas. E isso pode ser entendido desde o léxico da palavra: logia significa estudo, estudo sobre o futuro. Ele não aconteceu ainda, mas é um estudo sobre possibilidades, sobre formas de tornar esse futuro tangível.
CT: A ficção científica dos autores de hard sci-fi, que também eram cientistas e usavam a ciência na construção de seus universos - esses trabalhos também são considerados futurologia?
LZ: Sim. Como Eu mencionei, ficção científica é uma das disciplinas do future studies, apesar de a ficção científica não ser, em si, responsável por prever o futuro, mas sim especular possibilidades que, às vezes, são postas em um tempo futuro, mas dizem muito mais sobre nosso presente - a Margaret Atwood fala muito disso, que a ficção científica não fala do futuro, mas sim do presente... Afinal, o futuro sequer existe ainda. Porém, autores como Arthur C. Clarke foram considerados futuristas por conta de suas contribuições científicas e trabalho na tentativa de imaginar o futuro - existe um vídeo muito bom dele, de 1974, no qual ele fala sobre um futuro de computadores portáteis e uma rede mundial de computadores, por exemplo. Isaac Asimov também colaborou muito tentando pensar um framework funcional de leis da robótica que são até hoje estudados por engenheiros e lawmakers. Mas é importante não cobrar dos autores de ficção científica de preferem ou de acertarem o que vai acontecer no futuro. Alguns futuristas como Ray Kurzweil gostam de ficar dando datas para quando as coisas vão acontecer, mas ele é bastante controverso e tem muita gente que questiona essas previsões dele. Então é meio que por aí.
CT: Você falou no início sobre a importância da diversidade na área. Pode comentar um pouco mais sobre isso? Como você vê o impacto que a diversidade pode trazer nesse trabalho?
LZ: Então, se futurologia é uma disciplina que ajuda as pessoas e empresas a construírem um possível futuro, então é importante que tenha diferentes pessoas atuando nessa frente para poder levar em conta diferentes possibilidades de futuro. Eu como mulher branca não tenho o mesmo olhar de uma mulher negra sobre o presente e sobre o futuro. Coisas que eu não estou olhando por algum motivo podem estar no radar de outra pessoa que tem uma outra vivência que a minha. Eu fiz uma matéria sobre isso para a revista cause no ano passado falando como no Brasil temos muitas mulheres atuando na futurologia, mas não é assim no mundo todo - os principais futuristas conhecidos são homens brancos americanos que não levam em conta as particularidades de outras etnias, culturas, religiões, economias etc. Por isso gosto de reforçar que o futuro não deve ser um substantivo singular, mas sim plural, porque existem vários tipos de futuro e não apenas aquele do vale do silício. Temos um futuro diferente na China, em Dubai, em países africanos, no Japão e no Brasil. A Monique Evelle tem um TED talk incrível no qual ela fala sobre o vale do silício e o vale do silêncio, que são as periferias. Não são vales do silêncio porque não produzem nada, mas sim porque são silenciados e a inovação que vem das margens não é considerada inovação, mas sim gambiarra. Por que? Ela questiona justamente isso.
CT: Isso me lembra de trabalhos brasileiros de sci-fi, como o filme Janaína Overdrive. Além da inclusão - a protagonista é uma ciborgue transexual - ele traz provocações bem pertinentes aos dias atuais sobre questões de gênero e sexualidade, e as relações corporações-população marginalizada, e tudo dentro do contexto e da cultura cearense. Existem futuristas trabalhando com temas marginalizados como questões de raça, transgeneridade e subculturas próprias do Brasil? Especialmente futuristas que sejam parte desses recortes?
LZ: Bem, eu escrevi um texto sobre esse curta uns anos atrás para um site americano justamente entrevistando o diretor do filme e falando sobre essas questões. Tenho uma amiga que é a Beatrys Rodrigues que estuda gênero na academia, então sempre que possível ela traz essas questões também para o trabalho dela em futurologia. Ela está trabalhando, no momento, em uma pesquisa sobre futuro do gênero e questões de gênero em um projeto da Envisioning junto à Ariana Monteiro, que também é pesquisadora da Trop.Soledad, uma plataforma de pesquisa de tendências com foco na América Latina e suas particularidades - ou seja, elas brincam que elas "tropicalizam" as tendências para que elas não só traduzam o que ocorre lá fora, mas que faça sentido dentro do nosso contexto. A Monika Bielskyte é uma pesquisadora estrangeira que também se dedica a falar sobre gênero e diversidade, mas não no Brasil. O mesmo vale para a Martine Rothblatt e seu trabalho sobre post-genderism.
No Brasil, conheço essas pessoas, bem como a Monique Evelle que traz muito essa questão racial, e o Fábio Kabral e Morena Mariah que trabalham com o afrofuturismo para pensar um futuro mais voltado à ancestralidade da cultura africana. A Morena, inclusive, tem um projeto chamado Afrofuturo que é pensando nisso. Ela faz parte de um outro movimento chamado Torus, do qual eu também participo, no qual pensamos sobre temporalidade, espírito do tempo e diferentes formas de se ver o mundo. Lá também há muito espaço para diversidade e, apesar de terem pesquisadores morando em diferentes países, todos são brasileiros. A Camila Ghattas também é outra futuróloga que fala sobre gênero e diversidade, atualmente ela está trabalhando na China e tem visto muito essa diferença entre os dois países. Publiquei uma entrevista com ela recentemente, mas não tocamos no assunto de gênero e diversidade.
CT: Como os futurólogos trabalham com a ética do uso das tecnologias? A sci-fi costuma tratar dessas questões, mesmo sem criticar a tecnologia em si, mas a forma como é usada, a quais interesses ela serve. As pesquisas na futurologia também tem esse papel mais, digamos, social?
LZ: Nesse sentido, sim, os futurólogos por não serem engenheiros e tecnólogos são responsáveis por traduzir essas questões mais técnicas para as pessoas que não têm esse conhecimento tecnológico, e como a maioria tem formação em humanas, então temos mais essa orientação para uma provocação mais ética, filosófica ao mesmo tempo em que também tem uma outra vertente mais voltada para ao entretenimento. Da minha parte, eu sempre trago essas provocações mais filosóficas, críticas e políticas, questões de gênero etc. Acho que nesse sentido é onde encontramos também um ponto de intersecção entre a futurologia e a ficção científica e por isso que eu gosto muito de trazer as obras de fc em pauta: elas fazem bem o papel do futurólogo traduzindo conhecimento técnico de forma fácil, com entretenimento e arte, ao mesmo tempo em que também possibilita a imersão para uma reflexão mais crítica.
CT: Voltando ao assunto das relações corporações-população, como é trabalhar com as empresas quando elas são, muitas vezes, consideradas como vilãs, justamente por causa de suas tecnologias que acabam trazendo problemas bastante complexos aos usuários?
LZ: Pois é, existe uma questão do design fiction, por exemplo, em que se fala sobre como é importante que esses processos de imaginação do futuro a partir da ficção científica não sejam algo fechado para as empresas, mas que estas devolvam e abram com a sociedade. E isso vale também para a futurologia como um todo. A Camila Ghattas, que mencionei há pouco, fala muito sobre a importância de popularizar a futurologia e de torná-la algo acessível a todas as pessoas - e é isso que ela tem tentado fazer na China com projetos educacionais e focados em empreendedorismo feminino. De qualquer modo, ocorrem essas lapsos, como por exemplo quando um vídeo de um projeto de design fiction do Google vazou e levou à tona essa discussão.
Eu não tenho como falar por todos os futurólogos, em especial porque há alguns que são muito mais focados em estratégia de negócios e afins, mas da minha parte, eu prefiro até não me chamar de futurista por ter essa carga mais de negócios, como eu mencionei naquela definição da Aerolito. Na futurologia eu vejo muito mais uma disciplina que incita a reflexão do que ajuda as empresas a continuarem lucrando e prosperando. Talvez uma comparação seria entre os sofistas e os filósofos: como futuróloga, eu não quero te ensinar a discursar e argumentar perfeitamente, mas sim a pensar e refletir e chegar às suas conclusões. Ao provocar a reflexão e o pensamento crítico, eu justamente quero trazer em pauta essas possibilidades negativas que você menciona, mas também outros efeitos positivos que nem sempre são visualizados por fala de conhecimento técnico ou qualquer outro motivo. Ao usar a ficção científica, fica mais fácil de tangibilizar essas narrativas que demonstram possibilidades negativas e positivas de uma tecnologia muito mais do que simplesmente criar a próxima ferramenta que irá gerar engajamento de 200% e fará uma startup se tornar um unicórnio ou uma empresa dobrar sua receita. Na UP, por exemplo, onde eu atuo como head de inovação e futurismo com o projeto UP Future Sight, nós temos a preocupação de sempre entregar projetos que gerem impacto e que este seja positivo - seja ambiental, social, econômico (num sentido de sustentabilidade) etc.
Como alguém que adora cyberpunk e se formou pesquisando e escrevendo nesse gênero, eu acabo sempre trazendo essa provocação arquetípica daquela empresa ou corporação que se torna o grande inimigo em uma narrativa (por exemplo Skynet em Exterminador do Futuro) justamente para alertar de que certas decisões podem fazer com que as empresas se tornem mais uma Skynet do que uma empresa realmente desejável e que ajude a sociedade a atingir um cenário futuro mais positivo. Mas a realidade é muito mais complexa do que isso, claro, porém na ficção, com esses arquétipos bem demarcados, fica mais fácil de a gente extrapolar e trazer à tona a questão.
CT: Para os que se interessam por futurologia ou àqueles que leram essa matéria e agora querem se tornar futurólogos - o que você recomenda? Quais passos essa pessoa pode seguir?
LZ: Não existe uma formação acadêmica para quem quer trabalhar com futurologia, mas existem alguns cursos livres em escolas como a Aerolito, Instituto Europeo de Design, cursos livres na ESPM, na Umbora em Fortaleza e assim por diante. Existem vários cursos e até mesmo disciplinas nos cursos de publicidade e propaganda sobre pesquisa de tendências e isso pode ajudar bastante. Para ler e entender melhor, sugiro ler autores como Amy Webb, Ray Kurzweil, Zoltan Istvan, Douglas Rushkoff ou o próprio Yuval Noah Harari, que ficou bem conhecido recentemente. E existem vários sites tipo Futurism, Singularity Hub, reportagens especiais do UOL Tab, MIT Technology Review, o meu blog UP Future Sight e sua newsletter, a newsletter The Adjacent Possible etc.
De antemão, eu diria que você precisa gostar de estudar e pesquisar, porque ser futurólogo é estar constantemente pesquisando, estudando, correndo atrás das novidades e se formando criticamente para pensar o futuro. Acho que é meio que por aí!
*Lidia Zuin é jornalista e futuróloga, mestre em semiótica e doutoranda em artes visuais pela Unicamp. Head do núcleo de inovação e futurismo da UP Lab, é pesquisadora, editora do blog e curadora de notícias da newsletter UP Future Sight. Atualmente assina coluna quinzenal sobre futurologia, tecnologia e ficção científica no UOL Tab.
Também pesquisa tendências de comportamento e tecnologia para a Envisioning e Torus, além de atuar como freelancer na área de produção de conteúdo e pesquisa em futurologia. Foi editora de conteúdo para as redes sociais da WinWin e professora convidada da Aerolito e Sputnik. Foi redatora da Farfetch, Paratii e Bem Phyna. Possui textos acadêmicos publicados em periódicos e livros, tendo apresentado trabalhos em universidades nacionais e internacionais. Publicou contos de ficção científica em coletâneas, além da série de e-books REQU13M. Como palestrante, teve passagem por eventos como o Festival Path, FLIP, Roadsec e também possui dois TED talks.