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Campus Party | Snowden, a falsa concordância e o poder de mudar as coisas

Por| 11 de Julho de 2020 às 15h00

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Wired
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Edward Snowden

O mundo se encontra em um estado, no mínimo, inusitado, com a pandemia do coronavírus nos confinando as nossas casas e obrigando grandes eventos presenciais como a Campus Party a mudarem sua abordagem, deixando a tradicional proximidade de lado para investir em uma conexão remota. Para Edward Snowden, porém, essa é a realidade desde 2013, quando ele conseguiu asilo na Rússia para escapar das denúncias e perseguições em seu país natal, os Estados Unidos.

Afinal de contas, estamos falando do homem que detonou um dos maiores escândalos de privacidade da história dos EUA, que bateu perto do coração do governo do país e revelou o esquema de espionagem ostensiva que as agências de segurança operavam contra seus próprios cidadãos. Para Snowden, falar para uma tela e, segundo ele, “testemunhar as coisas acontecendo em vez de participar delas” é uma realidade constante que, agora, atinge todo o mundo, mas por motivos bem diferentes.

Apesar da situação própria e de todo o mundo, não apenas no que toca o coronavírus, mas também o estado da política, democracia e privacidade, o especialista em segurança digital tinha uma mensagem otimista para passar. Seguindo o tema da Campus Party Digital, que é “reinicie o mundo”, ele demonstrou acreditar que esse processo já está acontecendo, por mais que, atualmente, a sensação é de que nos encontramos em um momento de regressão.

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Para ele, isso se aplica não apenas à política, mas também à tecnologia e às redes sociais. A ascensão do autoritarismo do lado de fora da tela acompanha um movimento de violência cada vez maior em nossas redes, e essas duas coisas estão diretamente relacionadas. “Muitos dos problemas que vemos no Facebook são, na realidade, da humanidade”, afirmou Snowden. “Existem pessoas boas e ruins, e estas podem ter encontrado uma plataforma e a voz que não tinham antes. Agora, elas podem ser ouvidas”.

Ao contrário do que poderia se esperar de uma fala do delator, a conversa com jornalistas transmitida ao vivo na manhã deste sábado (12) chegou a assumir tons comportamentais. Ele comparou o estado atual da tecnologia com a adolescência humana, um momento em que há ampla capacidade de fazer virtualmente qualquer coisa e oportunidades de sobra, ao mesmo tempo, em que todo esse potencial também pode ser explorado pelo caminho do mal, do erro e da destruição. Para o especialista, ainda há pouco entendimento sobre como será crescer a partir disso tudo, mas essa noção está, sim, chegando.

“Gosto de pensar que, assim como os adolescentes amadurecem, nós também passaremos por isso”, afirma, ressaltando que as mesmas abordagens, práticas e atitudes que hoje causam repulsa e modificam nossas vidas para pior, em um futuro próximo, deixarão de ser efetivas. “Já nos chocamos tantas vezes que nos tornamos mais duros”, completa. Esse, para Snowden, é o primeiro passo para mudança, e afazer com que ela aconteça, em vez de ficarmos parados e anestesiados, é o que vai definir se o futuro será sombrio ou claro. Para ele, a segunda opção parece a mais provável.

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Os temas abordados por Snowden, em um primeiro olhar, podem parecer gigantescos, como monstros enormes muito mais poderosos do que cada um de nós — até porque, realmente são. Entretanto, para o delator, existem caminhos para que as mudanças ocorram e elas passam, justamente, pela ideia de que, por mais que as ameaças atinjam as liberdades individuais, é na coletividade que está o caminho para uma melhora geral.

É um papo com temática filosófica, que parece fora do usual esperado dele, mas que está totalmente de acordo com a experiência de vida de Snowden. Ele fala em uma ideia de “falso consentimento” e cita os termos de uso das plataformas digitais como um exemplo. “Quando tudo o que podemos fazer é pressionar ‘ok para continuar’, essa é uma falsa escolha e uma opção forçada”, explica, extrapolando a questão, também, para legislações e normas governamentais cada vez mais autoritárias e que reduzem a individualidade dos cidadãos.

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Ao mesmo tempo, não cabe às empresas privadas fazer esse controle, também. Snowden cita como positivas as iniciativas de nomes como Apple e Google, que estão introduzindo mecanismos de controle em seus sistemas operacionais para evitar vigilância, mas alerta que tais atitudes exigem o mesmo nível de cobrança e escrutínio dado às instituições. Afinal de contas, com governos ou corporações, o usuário ainda não possui controle sobre os próprios registros, e essa é uma alternativa perigosa, não importa o sentido.

Snowden enxerga tais iniciativas, também, como uma forma de moldar a sociedade, já que, a todo momento, há um processo de decisão alheio ao indivíduo sobre o tipo de discurso que ele pode ou não ouvir. Na visão do especialista, discursos de ódio, preconceito e violência são indiscutivelmente danosos e devem ser combatidos, mas entregar esse controle nas mãos dos administradores de redes sociais e sistemas online não é a melhor alternativa.

Aqui, ele falou diretamente sobre o Brasil e a atual discussão quanto à legislação sobre as fake news, mas entregou também um panorama global. “É um erro tratar essa questão de forma única e a abordagem atual não será eficaz para o interesse público. Transformar as plataformas em autoridades sobre a informação não é o caminho correto”, afirma. Para Snowden, os responsáveis pela propagação de notícias falsas devem ser investigados e punidos nos termos da lei, de forma individual e de acordo com o que foi realizado por cada um deles. Entretanto, os governos também sabem disso e impõem obstáculos como as dificuldades de um inquérito desse tipo ou a polarização política para abordar o tema de forma genérica e, por fim, manobrar a discussão em favor próprio.

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Snowden demonstrou essa abordagem na prática ao falar sobre a guerra comercial entre os EUA e a China, principalmente, no que toca a implementação da tecnologia 5G pela Huawei, que acabou banida pelo governo Trump sob suspeita de espionagem. Ele destaca que esse não é um movimento novo, e sim, um que existe desde a Guerra Fria, com a diferença sendo, apenas, quem está no comando das tecnologias de comunicação. O temor, diz, sempre recai sobre o “adversário”, enquanto a ideia é garantir que o controle seja próprio, e não alheio. No caso do país asiático, a questão vai além da privacidade e envolve também interesses econômicos e políticos.

O especialista, entretanto, apresenta uma ideia fora da curva ao declarar que o ponto de foco não deveria ser a presença ou não de portas de entrada para vigilância ostensiva ou a possibilidade de um desligamento total das redes em caso de conflito, e sim, a confiança em quem está no comando. Sobre isso, Snowden é taxativo: “se você não produz sua própria tecnologia, sempre estará exposto a algum tipo de controle externo. A grande questão é se você acredita que quem controla não vai abusar de sua posição. Espero que a resposta seja sempre negativa, seja uma empresa ou governo, nacional ou internacional.”

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Na medida em que a conversa tomava rumos sinistros desse tipo, porém, o especialista trazia sua visão mais positiva à mesa. Ao demonstrar sua preocupação com movimentos de negação da ciência ou de anti-intelectualismo, por exemplo, ele aponta que tais abordagens têm a ver com uma noção generalista de que as instituições oficiais, muitas vezes, estiveram erradas. O caminho é correto, aponta, mas não a rejeição completa, já que isso nos leva em direção a uma sociedade cada vez mais autoritária da qual devemos ativamente fugir.

Como salvar a democracia?

Diante de tudo isso, então, a pergunta acima foi feita diretamente ao delator, que afirmou não ter uma resposta. “Esse é justamente o ponto. Nenhum de nós tem que ser inteligente sozinho.” Para ele, essa noção se perdeu ao longo da última década por conta do citado descrédito das instituições oficiais e isso nos trouxe à situação atual. “Ficamos tão assustados que decidimos investir o pouco poder político que temos, nosso voto ou escolha comportamental, naqueles que prometeram resolver tudo. No final não estamos sendo liderados, estamos sendo dominados.”

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As pessoas não querem isso, aponta ele, e aos poucos, surge um raio de luz na medida em que a sociedade entende a atual situação e as consequências de decisões do passado. As manifestações que tomaram conta dos Estados Unidos nas últimas semanas, por exemplo, são um reflexo do que, no ponto de vista de Snowden, é um movimento de mudança ainda incipiente, mas que deve crescer e tomar proporções cada vez maiores.

E novamente, vem aquela pitada de otimismo inusitada para quem sentiu na pele o peso da mão governamental e teve de abandonar sua pátria por revelar o que sabia. “Uma vez que os responsáveis pelas políticas de hoje deixarem o poder e forem substituídos por uma nova geração, que nasceu no estado atual das coisas, as coisas devem melhorar.”

Não se trata, porém, de apenas esperar esse momento chegar. Snowden acredita que não basta apenas acreditar em algo e falar sobre o assunto nas redes sociais, é preciso protestar e se manifestar. Novamente, entra em cena a questão da coletividade, já que alguém publicando sozinho tem a impressão de não possuir força suficiente, mas uma vez que todos se unem, suas vozes são ouvidas em uníssono. “Nossos direitos não foram dados de presente, e cabe a nós continuar lutando por eles e também por novos. Só assim é que as coisas vão acontecer para melhor”, completou.